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Cão também é 'gente'... mas nem tanto

 

“Cachorro é um ser humano como outro qualquer” é a frase lapidar de determinado político que entrou para a história do Brasil ao utilizar um carro oficial para levar sua cadela ao veterinário. Realmente, como político, ele foi excelente dono de bicho – e muito mais excelente que o necessário.
Humanizar cães pode ser desumano
O ser humano tem a capacidade de se afeiçoar não só a outros seres humanos, mas também a bichos e objetos, a ponto de humanizá-los, mesmo que de “brincadeira a sério”. Lembro de um crítico musical dizendo “amo tanto esse disco que vou comprar algo para ele comer”, e de um samba de Paulo Ruschel cantado pela grande Inezita Barroso, em que ela se consola por ter um marido folgado lavando a roupa dele: “Lesco-lesco todo dia/converso com a tina dágua”. E quem de nós jamais elogiou ou xingou o computador , automóvel ou outro acessório quando este “resolve” funcionar bem ou mal?

De Esopo a Disney, de La Fontaine a Pixar, nunca houve problema, muito pelo contrário, em ficção com animais antropomórficos a serviço da didática ou do entretenimento. Também não há problema em dar a animais de estimação nomes humanos.

Tudo bem também vestir nossos peludos com óculos e roupas, quando isso os beneficia em termos de visão e proteção do frio, pois nem todos os peludos são tão peludos assim. Sempre repetimos que a inteligência canina equivale à de uma criança humana de dois anos e meio.

“Conversarmos” com nossos caninos é bom para nós e para eles, como forma de chamar e receber atenção. Eu mesmo me refiro a meus dois cães como “meus netos”, por serem “filhos” de meu filho humano. E não faltam pessoas que se afeiçoam a seus peludos – geralmente na falta de genitores, filhos ou cônjuges humanos – a ponto de reservarem para eles a melhor comida e acomodação.

Agora, quando se vai além, aí sim, começa a haver problema. É perfeitamente compreensível e até desculpável uma mãe, como a da canção “O Menino da Porteira”, de Teddy Vieira e Luizinho, queixar-se do “boi sem coração” que matou seu filho, embora a culpa provavelmente tenha sido de “pessoas sem cabeça” que descuidaram do boi ou do menino. Bois e outros bichos não têm as noções de moral e certo ou errado dos humanos adultos. O ser humano demorou a entender isso, embora já tenha percorrido um bom caminho nesse sentido desde a Idade Média, quando animais que fizessem o que não deviam, geralmente matar pessoas (tal como o “boi sem coração”), roubar comida ou, no caso de gatos, “servir ao Demônio”, iam a julgamento, com advogado e tudo!

Se o ser humano já percorreu um bom caminho, ainda há um pouco mais a caminhar. Milênios de convivência e socialização com seres humanos não fizeram do canino um ser humano. Os únicos cães que podem adentrar quaisquer ambientes são os cães-guia, e somente acompanhando os donos a quem estão guiando. Dizer ao cão “já te falei para sair e não ficar largando pêlo no chão que estou querendo limpar!” continua sendo muito menos eficaz e necessário que mostrar a porta e dizer simplesmente “sai!”.

“Comida é pasto”
Sem dúvida, devemos tratar os caninos e bichos de estimação em geral tão bem quanto as pessoas. Isso significa também que, assim como crianças humanas não devem ser mimadas, excesso de paparico pode ser prejudicial ao cão.

Se cuidar de menos é ruim, cuidar demais também é. Ou, como resume o verso de Erasmo Carlos: “proteção desprotege e carinho demais faz arrepender”. Já falei neste espaço sobre aquelas supermães que gritam “vai vestir casaco, menino, que eu estou com frio!” Pois bem, sabemos que caninos, inclusive “filhos” de políticos, estão terminantemente proibidos de comer chocolate, pois o cacau contém teobromina, que a partir de certa quantidade é fatal a cães e vários mamíferos – e foi em atenção aos donos chocólatras que se inventaram os chocolates especiais para caninos, para que toda a família possa usufruir desse prazer unida.

É desaconselhável tratar os cães como “filhos” ou “irmãos” a ponto de deixá-los pular ou dormir na cama e sofá (especialmente os peludos de grande porte) e alimentá-los com comida para humanos, exceto em ocasiões muito especiais e somente com alimentos idem.

O ideal continua sendo uma boa ração especial para cães, pois nossa comida pode lhes causar mau hálito e, por sujar mais facilmente os dentes, maior dificuldade na higiene bucal (cães são menos sujeitos a cáries, mas não a tártaro e infecção nas gengivas), sem falar que vinagre, sal, açúcar e outros temperos podem lhes fazer mal à saúde. Cães também estão sujeitos a males como diabetes e colesterol. Além disso, as rações têm antioxidantes que fazem bem ao pêlo dos peludos, e os dejetos resultantes são mais consistentes, menos fétidos e mais fáceis de limpar.

Ah, sim: na hora das refeições todos devem sentar-se à mesa – menos os caninos, que precisam estar sempre cientes e lembrados de que são dominados (no bom sentido) e são diferentes dos humanos. Se seu peludo vier insistir para ganhar comida com aquele olhar pidão de quem não come há meses, não se deixe enganar nem dominar: dê-lhe, quando muito, uma lasca infinitesimal de comida e mostre-lhe o prato de ração.

Carinho ou dominância?
Muito se fala em democracia e ditadura como se fossem os únicos sistemas de governo existentes. Mas existe um terceiro: a hierarquia. Na democracia todo mundo (pelo menos teoricamente) manda por igual; na hierarquia há uma clara divisão de cargos e atribuições. Uma família, por exemplo, é uma hierarquia, onde pai e mãe são superiores aos filhos – e todos os humanos são superiores aos bichos.

Mais polêmico que deixar o cão subir na cama é beijá-lo na boca, o que costuma ser tolerado pela sociedade, sendo apenas “excesso” de carinho e não chegando a ser bestialidade ou zoofilia. Talvez seja melhor discutir esse hábito em outra ocasião; por ora, lembremos outras partes do próprio corpo que o peludo costuma lamber.

Como lembramos, proteção desprotege. Se o peludo passar por um grande trauma, confortá-lo demais poderá tirar-lhe a iniciativa de superá-lo sozinho e ser o alfa sobre outros cães que houver na casa. E atenção para a sutileza: quando o peludo insiste muito em colocar a pata em seu joelho ou o focinho em sua mão, ele não está fazendo cafuné, e sim “lutando” contigo e “desrespeitando” sua dominância.

Enfim, cães e outros bichos de estimação devem ser tão respeitados e bem tratados como seres humanos, mas não são seres humanos. Têm inteligência, porém mais simples que a humana. Podem ser “crianças de dois anos e meio”, mas não falam nem escrevem em idiomas humanos. Têm sentimentos, mas limitados à satisfação de carinho, instintos e necessidades básicas. Conseguem perceber quando o dono está triste, e ajudam muito a alegrá-lo, mas não podem entender o motivo da tristeza. Cães não são gente – embora muitos sejam mais “gente” que certas pessoas por aí, não sendo “humanos” como um “ser humano qualquer”...